Perplexidade
A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e
mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as
sobrancelhas breves. «Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno
écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela
fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa
noite recusavam mesmo o ecran onde os seus olhares se confundiam. A menina,
porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada
no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a
rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no
fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que
alguém espancava alguém com requintes de malvadez.
«Isto, por exemplo.»
«Isto o quê»
«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema
que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente. Como de costume
preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os
outros.
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Não percebo.»
«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e…
Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal.
E depois a televisão… Nos filmes, nos anúncios… Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou
fundo como quem se prepara para uma corrida difícil.
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca
de inspiração. «A vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito,
do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito
anos, recusava.
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como
pássaros de asas cortadas.
Infelizmente é a grande e cruel verdade dos tempos que correm!😟
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