segunda-feira, 9 de junho de 2025

    

A sirene da viatura cortava o silêncio das ruas vazias. Era Abril de 2020 e a cidade dormia um sono forçado, “imposta” ao recolhimento pela pandemia. O sargento Almeida olhava pela janela do carro enquanto dirigia. Nunca vira as avenidas tão desertas. Os bares, as lojas, os filhos da noite que antes se espalhavam pelos passeios estavam agora sumidos, como se a cidade tivesse sido evacuada. Apenas o eco dos pneus sobre o asfalto lembrava que ele ainda estava ali, em patrulha.

Sentado ao seu lado, o agente Freitas mexia no rádio, ajustando a frequência.

— Parece um cenário de filme — disse Freitas, quebrando o silêncio.

— Filme de quê? — Almeida perguntou sem tirar os olhos da rua.

— Sei lá... Fim do mundo, talvez.

O sargento sorriu de canto de boca. Freitas era jovem e novo na polícia. Ainda se assustava com a ideia de uma cidade sem barulho. Almeida, por outro lado, já estava há quase trinta anos na corporação e vira a cidade em suas piores versões: protestos, violência, eleições conturbadas. Mas agora era diferente. Agora, os inimigos eram invisíveis.

A viatura dobrou uma esquina e viu um homem a baixar a porta de aço de uma mercearia. Passava das dez da noite. Almeida reconheceu o sujeito: Ti Zé, um comerciante do bairro. Pequeno, de cabelos grisalhos, mãos calejadas de quem sempre trabalhou duro. A pandemia atingira em cheio seu negócio. Vendera fiado para os vizinhos, esperava a ajuda do governo, mas a mercadoria escasseava, e as contas não esperavam.

— Está tarde pra estar aberto, Ti Zé — Almeida disse ao sair do carro.

O homem suspirou, cansado.

— Eu sei, sargento. Mas precisava vender mais um pouco... Não sei como vai ser o mês que vem. Minha neta precisa de leite.

Almeida ficou em silêncio. A regra era clara: não podia haver comércio aberto naquele horário. Mas ele olhava para o homem à sua frente e não via um criminoso. Via um trabalhador desesperado.

Freitas já puxava o bloco de multas. Almeida colocou a mão no ombro do jovem agente e o interrompeu.

— Tem leite em casa, Freitas?

— Como é? — O agente piscou, confuso.

— Perguntei se tem leite em casa. Para o seu filho. Ou sua irmã pequena. Você sabe como é não ter?

Freitas hesitou. Olhou para o velho à sua frente. Baixou o bloco de multas.

Naquele instante, um grito distante rasgou a rua. Almeida virou-se rápido, levando a mão à arma. Do outro lado da praça, uma mulher chorava enquanto um rapaz corria para longe, segurando algo junto ao peito.

— Assalto — Almeida rosnou.

Freitas já estava em movimento. Subiu na viatura e ligou a sirene. O carro arrancou, perseguindo o ladrão. Almeida olhou pelo retrovisor e viu o Ti Zé ainda parado, sem saber se agradecia ou se lamentava a própria sorte.

Naquela noite, o sargento teve certeza: a pandemia mudava muitas coisas, mas não mudava a essência das pessoas. O homem bom continuava bom. E o homem mau... bem, esse nunca perderia a oportunidade de provar quem era. Almeida suspirou e pensou consigo mesmo: que esse tempo difícil passasse logo, antes que o mundo se esquecesse do que realmente importa .


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