domingo, 9 de novembro de 2025

   

O espectro da vigília

António era um polícia conhecido pela dedicação ao trabalho, mas a sua rotina escondia um abismo. Desde a infância, carregava as cicatrizes de um pai violento e uma mãe ausente, além de um segredo enterrado: aos 14 anos, testemunhara a morte acidental de um amigo, silêncio que o consumia. Adulto, combatia os fantasmas com comprimidos para manter-se acordado, garrafas de whisky e jejuns prolongados. O corpo, um cadáver em movimento; a mente, um vulcão prestes a explodir.

Um mês mergulhado em insónia química. António trocava o turno da noite por bares sujos, onde o álcool nublava a dor, mas alimentava as sombras. Na madrugada do trigésimo dia, as vozes surgiram: sussurros cortantes como facas. *“Vamos matar ele”*, ecoavam das paredes. Mudou de bar, mas as vozes o seguiram, agora acusatórias:

*“Ele matou nosso amigo!”*. O passado respirava em seu ouvido.

No terceiro bar, jovens riam à mesa. Para António, cada risada era uma conspiração. Enfurecido, confrontou-os, pistola em riste. A discussão explodiu em ameaças, até que ele fugiu, perseguido por gritos invisíveis. Em casa, as vozes viraram coro: *“Merece morrer!”*. Sem controle, invadiu a casa ao lado. Os vizinhos dormiam. O primeiro tiro ecoou. Depois, outros. A rua tornou-se um labirinto de sangue, até ele refugiar-se na esquadra, onde, exausto, desmaiou sob o símbolo da lei que jurara proteger.

Acordou no hospital psiquiátrico, pulsos amarrados. A lucidez voltava como um raio: via os jornais, as manchetes sobre o “monstro” que matara oito pessoas. Lembrou-se dos rostos dos vizinhos, dos estranhos na rua, da própria pistola fumegando. Chorou, não pelas vítimas — ainda incapaz de processar —, mas pela criança assustada que ainda habitava seu peito, agora sepultada sob a culpa.

Anos depois, numa cela isolada, António recebia cartas de ódio e raros estudos médicos sobre psicose induzida por stresse extremo. Nas noites em silêncio, ouvia não mais vozes, mas o peso do impossível perdão. Sabia: algumas feridas não fecham, apenas sangram em segredo. 


2 comentários:

  1. Muito bom! Numa altura em que tanto se fala de saúde mental, este texto, lembra-nos os demónios que muitos carregam, embora nem sempre diagnosticados e/ou tratados. Que pena haver sempre tantos a criticar mas tão poucos a ajudar e a tratar! 💔

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  2. Sem dúvida, e muito pouco se vê no seu tratamento com vista a uma ajuda eficaz... Muito bom😔

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