CRÓNICA POLICIAL
Duas mortes anunciadas e mal contadas
Seria de esperar que se tivesse procurado apurar todos os pormenores passíveis de fazer julgar e condenar os responsáveis pela morte a tiro dos dois chefes de Estado, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. O regicídio de 1908 e o assassinato do presidente, dez anos depois, continuam envoltos em incertezas e equívocos. E não é só isso que une estes dois momentos trágicos.
“Um Costa matou o Rei, outro Costa o Presidente, ainda ficou outro Costa para dar cabo da gente”. O adágio que corria de boca em boca entre a arraia miúda, apesar da propalada sabedoria popular, espelha os múltiplos enganos que rodearam os assassinatos de D. Carlos e de Sidónio Pais. Dez anos separam as duas mortes, que têm mais em comum do que se poderia pensar.
Para começar, a 1 de fevereiro de 1908 (na imagem) não foi da arma de Alfredo Costa que partiu o tiro fatal para D. Carlos, mas sim da sofisticada carabina empunhada por Manuel Buiça, o verdadeiro regicida. Duplo, aliás, porque também foi ele que eliminou o príncipe real, Luís Filipe.
Depois, há sérias dúvidas que tenha sido José Júlio da Costa a assassinar Sidónio Pais, em 14 de dezembro de 1918 (na imagem).
Ambos não chegaram a ser julgados por estes crimes, o primeiro porque foi abatido no local e o segundo, porque foi dado como louco e esse diagnóstico questionável terá contribuído para que não se sentasse em tribunal, embora tenha permanecido preso.
Os eventuais conspiradores e mandantes, bem como outros atiradores presentes, não identificados, escaparam incólumes.
Seria de esperar que se quisesse apurar todos os pormenores sobre o homicídio destas duas personagens da nossa história recente, mas nem D. Carlos, nem Sidónio Pais, de início, foram autopsiados. No entanto, ambos foram criteriosamente embalsamados, como era costume na época quando estavam envolvidos mortos ilustres.
Foi, aliás, este facto que permitiu, mais de um mês após a sua morte, dada a intervenção de um juiz curioso e intrigado, que fossem feitas perícias válidas ao corpo do presidente, às roupas (sendo que o casaco desapareceu) e a uma arma alegadamente apreendida ao assassino.
O relatório, com 124 fotografias, esquemas e desenhos, comprovou que, contrariamente ao que os jornais veicularam e constituiu a versão oficial, Sidónio Pais não foi baleado à queima-roupa – o que excluiria José Júlio da Costa, posicionado a curta distância – nem sofreu dois tiros, mas apenas um, frontal, que entrou pelo peito e saiu pela parede abdominal.
Fez ricochete na coluna vertebral, tal como um dos dois projeteis que atingiram D. Carlos, pelas costas.
As duas mortes foram, assim, imediatas, caindo por terra a patriótica e mítica frase final de Sidónio Pais, afinal inventada pelo criativo jornalista Reinaldo Ferreira.
Em vida, o comportamento dos dois chefes de Estado não podia ser mais díspar – o monarca, liberal e pouco interventivo; o Presidente, governando com mão de ferro e pose de soberano, justificando o epitáfio de presidente-rei, cunhado por Fernando Pessoa.
Mas, ambos tiveram papel principal no endurecimento da repressão aos seus opositores, no primeiro caso, através do executivo de João Franco, que governou em ditadura, beneficiando da rédea solta de D. Carlos.
Quanto a Sidónio Pais, embora tenha sido o único até então a ser eleito para o cargo por sufrágio universal entre os eleitores masculinos, alterou as regras, criando a autoritária Nova República.
Nos dois momentos decisivos, esta forma musculada de governo terá sido determinante para serem aniquilados por opositores à mesma. Quando sucumbiram, o rei tinha 45 anos e o presidente 46.
Quanto ao terceiro Costa referido no adágio popular. Será aquele a quem chamavam o "mata-frades" e que foi por quatro vezes presidente do ministério (equivalente a Primeiro-Ministro).
Mas, novamente, a ladainha não acerta. O governo que chefiava foi dissolvido por Sidónio Pais e Afonso Costa não voltaria a assumir tão importantes funções.
À margem
Em ambas as ocasiões de assassinato as motivações foram políticas e no seguimento de outras ações contestatárias frustradas, ocorridas dias antes. Eram mortes anunciadas.
A confusão que se gerou e a reação atabalhoada da polícia resultou em vítimas inocentes: um pobre empregado de ourivesaria, em 1908, mas nenhum dos atiradores conluiados com Buiça (na imagem) e Costa que se encontravam no percurso da carruagem real. É o príncipe Luís Filipe que mata Alfredo Costa, antes de também ser abatido.
Quatro pessoas foram sacrificadas entre as presentes na estação do Rossio, na fatídica noite de 1918, desconhecendo-se se algum deles seria cúmplice do principal suspeito e, igualmente, se foi mesmo José Júlio da Costa (na última imagem) a cometer o assassínio, até porque os testemunhos deste, inicialmente obtidos em interrogatórios com métodos questionáveis, variaram ao longo dos anos, não demonstrando consistência.
O início de século XX em Portugal foi, aliás, época de uma violência hoje difícil de imaginar nas nossas ruas. Entre intentonas, revoltas, atentados, prisões e execuções, morreram centenas de pessoas.
Curiosamente, dois dos episódios mais sangrentos ocorreram em outubro, tal como a Implantação da República:
Na “leva da morte”, em 1918, morreram sete opositores de Sidónio Pais. Ironicamente, entre estes estava o republicano Visconde da Ribeira Brava, alegadamente envolvido no regicídio de 1908.
Na denominada “noite sangrenta”, em 1921, foram selvaticamente executados por elementos da marinha o Primeiro-Ministro, António Granjo, e mais dois históricos do republicanismo: Machado Santos e José Carlos da Maia, para além de Freitas da Silva, que tinha sido chefe de gabinete do ministro da Marinha demissionário. Nesse serão fatídico, no meio das movimentações dos revoltosos, foi solto José Júlio da Costa. O alegado homicida de Sidónio Pais só retornaria à prisão seis anos depois, dessa vez, até ao fim dos seus dias.
Mas isso são outras histórias…
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Nota: sem que o esclarecimento sobre os seus assassinatos tenha sido beneficiado, ambos os chefes de Estado abatidos tiveram um papel fundamental na criação da rede pública de medicina legal: é no reinado do nosso penúltimo rei, D. Carlos, – em 1899 - que são criadas as três morgues com responsabilidade nas perícias médico-legais; foi no mandato do nosso quarto presidente, Sidónio Pais, que se fundou o Instituto de Medicina Legal.
Excelente documento. Gostei. (O Gráfico)
ResponderEliminarBoa lição de história!
ResponderEliminarUma excelente lição de Criminologia.
ResponderEliminarV.K.