quinta-feira, 18 de setembro de 2025

     

O APELO DA NOITE

Nem tudo lhe tinha corrido bem nesse dia, aliás, para falar verdade, há muito que uma ligeira fadiga lhe enfraquecia a vontade. Ele, que se preocupava quase numa breve ilusão, em transformar todos os dias, num dia diferente, de um quotidiano implacável, no qual tinha inconscientemente mergulhado, já há muito, dizia para ele próprio - que por força das circunstâncias. Aquela era decididamente uma das noites de intranquilidade… vá lá saber-se porquê... era necessário fazer algo que libertasse aquela energia quase angustiante que o atravessava… talvez um longo fôlego de ar fresco… 

um respiro… o aliviasse… nem sempre se tinha lembrado de abrir a janela do quarto respirar e olhar mais além. Porém, nessa noite, extenuado de uma vida vulgar, chegou-se à janela… a imensidão da abóbada nocturna espraiava-se já lenta e serena por todo os recantos. Sem hesitar e quase sôfrego, inspirou longamente… os sentidos logo reconheceram aquele travo fresco e suave da atmosfera da noite, o balancear imperceptível das sombras, a docilidade da luz distante, a incerteza da vontade, uma lassidão… 

Numa breve pausa, o pensamento afluiu informe, mas distinto… era o abraço avassalador da noite, leve e subtil que como sempre, o reconheceu e o impeliu para o seu seio, sensação familiar, mas sempre indefinível. … nesse lapso, o seu pensamento projecta-se para paragens distantes há muito esquecidas nos recessos da mente e que se iam afavelmente embebendo nas memórias da noite, soltando-se enfim, livres e fluídas, desgarradas da prisão diária dos sentidos. …inspirou de novo mais profundamente… e quase sem dar por isso, sentiu-se envolvido pela enleante volúpia nocturna… o apelo era agora mais forte… quantas vezes tinha soçobrado à irresistível tentação desse apelo… quantas vezes se afogou nesse apela da noite fértil de vibrantes delírios… e como se sentia sedento desses tempos… 

…num rápido esforço compreendeu que a clausura não tinha sentido, agora que a brisa nocturna ia delicadamente penetrando em todos os seus poros e nessa possessão, sentia-se desligar de uma forma tão clara, das múltiplas grilhetas que desde há muito lhe vinham obstruindo as ideias sem disso se aperceber… … até que… pela janela e numa atitude semi-consciente e também súbita… fundiu-se na noite, sendo rapidamente assimilado pela cerrada e deleitosa escuridão nocturna, repartindo-se então em miríades, que o levariam a percorrer uma vez mais, na descoberta dos misteriosos confins nocturnos.

Braga, Julho de 2000


Augusto Pais


4 comentários:

  1. Muito obrigado pela gentileza na publicação do conto, que já tem 25 anos, mas sempre actualizado, tendo em consideração as realidades da vida de hoje!

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    1. Eu é que agradeço e que esta seja a primeira de muitas outras colaborações . Obrigado .

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  2. Belo Conto! Quem sabe, sabe! Um abraço ao Autor e ao Coordenador deste inigualável "Momento do Policiário"! 🦉 📚

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