Retalhos da vida de um morto

Tatuagem é marca indelével que permanece na pele até à morte. É coisa de marginais, gente de mau porte associada ao mundo do crime. Apesar de nenhuma destas afirmações corresponder hoje à realidade, assim foi durante séculos e, por isso, os desenhos das tatuagens faziam parte, como demais marcas físicas particulares, das fichas dos cadastrados, copiados por funcionários diligentes, entre outras indicações específicas que ajudariam a identificar os criminosos.
Até que um médico português teve a brilhante ideia de esfolar o indivíduo tatuado para dele extrair a epiderme decorada e, com isso, de forma mais documentada, estudar os elementos gráficos presentes, retirando daí informação sobre a índole e a origem do morto.
Foi assim que se chegou a uma insólita coleção de cerca de 70 retalhos de pele com medidas que variam entre os cinco e os 50 centímetro. Conservados em formaldeído, foram recolhidos entre 1910 e 1940, apresentando-se como autênticos testemunhos íntimos das vidas e paixões dos seus finados possuidores.
Eram maioritariamente homens dos bairros tradicionais de Lisboa, dados à fadistagem, ao desacato e aos pequenos crimes, que se apresentam como fragateiros, vendedores de rua, pedreiros, marinheiros, caldeireiros, pintores.
As mulheres tatuadas eram, predominantemente, “domésticas” e meretrizes.
Só estes grupos à margem da restante sociedade bem-comportada ousavam blasfemar, conspurcando com desenhos e escritos a sagrada pureza do corpo que Deus lhes havia dado.
Poucos destes exemplares primam pela genialidade das linhas.
São arte popular, toscamente traçada em condições difíceis e com instrumentos rudimentares, por um amigo ou camarada.
Revelam os gostos daquele que decidiu ser tela ambulante.
Apesar da elevadíssima taxa de analfabetismo entre estes grupos, predominam frases (juras de amor, afirmações políticas), nomes e datas.
Marcas de paixões feridas, representações obscenas, contrastando com os santos da devoção de quem assim se pintava, animais e criaturas excêntricas… marcas de prevaricação, que decoram várias partes do corpo, sobretudo os braços e peito, junto ao coração.
É uma coleção única no mundo, não porque mais ninguém se tenha dedicado a reunir tão curiosas frações do corpo humano, mas sim porque é acompanhada de meticulosa informação sobre o contexto em que foi produzida.
Devemo-la à iniciativa de Rodolfo Xavier da Silva médico e diretor do Instituto de Criminologia de Lisboa, que chegaria a ministro da então jovem República Portuguesa e ainda teve tempo para elaborar estudos sobre esta recolha, que continua fundamental para a compreensão da tatuagem em Portugal na primeira metade do século XX.
O conjunto pertence atualmente ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e, pelo valor histórico reconhecido, foi recentemente alvo de operações de restauro e exposição pública.
»»» Sinto-me bastante feliz e contente... por ver o meu Amigo "Virmancaroli" de retorno às publicações!! É BOM SINAL! Coragem e muita força... para o pleno regresso! Grande abraço.
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