O DIA EM QUE O MUNDO ACABOU
( Baseado em factos reais )
Sozinho no elevador, Ricardo foi invadido por uma sensação pouco habitual.
Era um final de tarde de Primavera ainda tímida e descia em direcção ao
estacionamento da grande loja de móveis e iluminação. Fora finalmente comprar o
seu sonhado "candeeiro de escritor", um daqueles verdes, de
quebra-luz translúcido horizontal. Tinha planeado um aprazível fim-de-semana
prolongado de escrita da sua primeira novela de mistério, e, fosse por se ter
achado subitamente sozinho num edifício tão grande, ou fosse a atmosfera
literária que já o invadia, sentiu-se inquieto.
TING! As portas abriram-se. Estava no parque de estacionamento, na cave.
Resolveu aproveitar a disposição inesperada para imaginar o seu conto. Talvez
começasse num parque de estacionamento, com um cadáver de chapéu borsalino,
fato branco e eco de passos em fuga. Ou um extra-terrestre de longo
casaco preto e óculos escuros. Ou, quem sabe, uma mulher de vestido escarlate,
num descapotável, à sua espera de arma na mão.
Ao longe, as últimas claridades do dia prateavam os cimos da Serra de
Sintra, e, ao seu redor, mais uma vez, solidão e silêncio. Tudo parecia
abandonado. Os seus passos ecoavam no piso quase vazio de viaturas. Um vento
fresco fazia rodopiar pedaços de papel em volta dos seus pés. Entrou no carro e
arrancou direito a casa, ainda sob efeito da atmosfera de presságio e dos
pensamentos sombrios, tão desconhecidos para um optimista inveterado como ele.
O tempo parecia estar a mudar.
"Pouco movimento na estrada", pensou. "Também não admira, é
quarta-feira e deve haver futebol...". O que é certo que deu por si a
ligar o rádio do carro em busca de uma voz humana que afugentasse os temores
vagos que teimavam em não o abandonar. Uma cantora de voz de falsete fê-lo
estremecer com a informação de que "não veio o ladrão" e "já não
há pessoas". Um relâmpago púrpura cortou os céus e iluminou por momentos
os contornos dos bairros suburbanos encavalitados nas colinas. O rádio
calou-se, o motor gemeu e Ricardo engoliu em seco.
Chegou a casa já de noite, sob uma forte bátega, entrou com o carro na
garagem (abençoado comando à distância) e chamou o seu gato amarelo, o Dick,
grande amigo e secretário oficial nas amenas vigílias de escrita. Não teve
resposta. Subiu as escadas, acendeu as luzes e ligou o televisor. "Com uma
disposição destas, até um noticiário seria bem-vindo", pensou.
Abençoou a arenga do locutor, que cavaqueava com dois painelistas de
futebol, fazendo a "antevisão da partida". Riu-se dos seus temores
semi-paranormais e fez um voto solene de nunca os contar a ninguém. "Mas
talvez os use como inspiração", pensou. De súbito, a trovoada cresceu, a
electricidade foi-se embora e um estrondo aparatoso veio da garagem, no
rés-do-chão. Susteve a respiração e apurou os ouvidos. Havia ALGUÉM lá em baixo.
E a única saída era lá por baixo!!!
Nas histórias de detectives, seria a altura propícia para ir buscar um
atiçador. Mas ele não tinha sequer lareira. E quanto a facas, sentiu-se um
tanto acanhado de ir buscar uma redonda, de mesa, que era o que de mais letal
tinha em casa. "Numa situação como esta, Sherlock Holmes já teria um
pequeno revólver Webley RIC na mão. Raios!".
Chuva, trovoada, falta de luz, e o tal ladrão da cantiga parece que tinha vindo
e estava no rés-do-chão a remexer tudo! Que noite!... Que noite!... "E
para cúmulo, já não há pessoas!". Ou pelo menos parecia, pois tudo era
escuridão, a falta de luz era geral, e no seu bairro todos estavam recolhidos,
ou... ausentes!
Ricardo Gonçalves nunca contou a ninguém que se meteu debaixo da cama até a
trovoada passar e a luz regressar. E muito menos que o ladrão afinal era
amarelo, tinha cauda e causou o aterrorizante rebuliço, depois de ter acordado
sozinho na garagem em noite de tempestade! Foi quando o Dick resolveu miar, que
ele percebeu...
Quando se sentou finalmente para escrever a sua história de mistério,
acompanhado de Dick e de uma chávena de chá preto, ainda considerou escrever
uma história de extra-terrestres e mulheres escarlate. Acabou por
desistir. O ronronar do Dick parecia um justificado pedido de co-autoria.
Soltou um longo suspiro, sorriu e escreveu o título: O DIA EM QUE O MUNDO
ACABOU.
E era caso para isso! Muito giro👏
ResponderEliminarEste novo espaço “ HORA DO CONTO “ já começa a ser um caso sério ao trazer até nós originais trabalhos com histórias tão diversificadas . São contos muito bem desenvolvidas e, com narrativas que conservam o interesse na leitura e, ocasionalmente com uma pitada de criatividade e diversão.
ResponderEliminarEste conto de Vic Key é bem um exemplo disso !
Parabéns e obrigado pela participação e que venham de lá mais contos .
Virmancaroli