sábado, 12 de julho de 2025

   

O  DIA EM QUE O MUNDO ACABOU

( Baseado em factos reais )


Sozinho no elevador, Ricardo foi invadido por uma sensação pouco habitual. Era um final de tarde de Primavera ainda tímida e descia em direcção ao estacionamento da grande loja de móveis e iluminação. Fora finalmente comprar o seu sonhado "candeeiro de escritor", um daqueles verdes, de quebra-luz translúcido horizontal. Tinha planeado um aprazível fim-de-semana prolongado de escrita da sua primeira novela de mistério, e, fosse por se ter achado subitamente sozinho num edifício tão grande, ou fosse a atmosfera literária que já o invadia, sentiu-se inquieto.

TING! As portas abriram-se. Estava no parque de estacionamento, na cave. Resolveu aproveitar a disposição inesperada para imaginar o seu conto. Talvez começasse num parque de estacionamento, com um cadáver de chapéu borsalino, fato branco e eco de passos em fuga. Ou um extra-terrestre de longo casaco preto e óculos escuros. Ou, quem sabe, uma mulher de vestido escarlate, num descapotável, à sua espera de arma na mão. 

Ao longe, as últimas claridades do dia prateavam os cimos da Serra de Sintra, e, ao seu redor, mais uma vez, solidão e silêncio. Tudo parecia abandonado. Os seus passos ecoavam no piso quase vazio de viaturas. Um vento fresco fazia rodopiar pedaços de papel em volta dos seus pés. Entrou no carro e arrancou direito a casa, ainda sob efeito da atmosfera de presságio e dos pensamentos sombrios, tão desconhecidos para um optimista inveterado como ele. O tempo parecia estar a mudar.

"Pouco movimento na estrada", pensou. "Também não admira, é quarta-feira e deve haver futebol...". O que é certo que deu por si a ligar o rádio do carro em busca de uma voz humana que afugentasse os temores vagos que teimavam em não o abandonar. Uma cantora de voz de falsete fê-lo estremecer com a informação de que "não veio o ladrão" e "já não há pessoas". Um relâmpago púrpura cortou os céus e iluminou por momentos os contornos dos bairros suburbanos encavalitados nas colinas. O rádio calou-se, o motor gemeu e Ricardo engoliu em seco.

Chegou a casa já de noite, sob uma forte bátega, entrou com o carro na garagem (abençoado comando à distância) e chamou o seu gato amarelo, o Dick, grande amigo e secretário oficial nas amenas vigílias de escrita. Não teve resposta. Subiu as escadas, acendeu as luzes e ligou o televisor. "Com uma disposição destas, até um noticiário seria bem-vindo", pensou. 

Abençoou a arenga do locutor, que cavaqueava com dois painelistas de futebol, fazendo a "antevisão da partida". Riu-se dos seus temores semi-paranormais e fez um voto solene de nunca os contar a ninguém. "Mas talvez os use como inspiração", pensou. De súbito, a trovoada cresceu, a electricidade foi-se embora e um estrondo aparatoso veio da garagem, no rés-do-chão. Susteve a respiração e apurou os ouvidos. Havia ALGUÉM lá em baixo. E a única saída era lá por baixo!!! 

Nas histórias de detectives, seria a altura propícia para ir buscar um atiçador. Mas ele não tinha sequer lareira. E quanto a facas, sentiu-se um tanto acanhado de ir buscar uma redonda, de mesa, que era o que de mais letal tinha em casa. "Numa situação como esta, Sherlock Holmes já teria um pequeno revólver Webley RIC na mão. Raios!".
Chuva, trovoada, falta de luz, e o tal ladrão da cantiga parece que tinha vindo e estava no rés-do-chão a remexer tudo! Que noite!... Que noite!... "E para cúmulo, já não há pessoas!". Ou pelo menos parecia, pois tudo era escuridão, a falta de luz era geral, e no seu bairro todos estavam recolhidos, ou... ausentes!

Ricardo Gonçalves nunca contou a ninguém que se meteu debaixo da cama até a trovoada passar e a luz regressar. E muito menos que o ladrão afinal era amarelo, tinha cauda e causou o aterrorizante rebuliço, depois de ter acordado sozinho na garagem em noite de tempestade! Foi quando o Dick resolveu miar, que ele percebeu...
Quando se sentou finalmente para escrever a sua história de mistério, acompanhado de Dick e de uma chávena de chá preto, ainda considerou escrever uma história de  extra-terrestres e mulheres escarlate. Acabou por desistir. O ronronar do Dick parecia um justificado pedido de co-autoria. Soltou um longo suspiro, sorriu e escreveu o título: O DIA EM QUE O MUNDO ACABOU. 



2 comentários:

  1. E era caso para isso! Muito giro👏

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  2. Este novo espaço “ HORA DO CONTO “ já começa a ser um caso sério ao trazer até nós originais trabalhos com histórias tão diversificadas . São contos muito bem desenvolvidas e, com narrativas que conservam o interesse na leitura e, ocasionalmente com uma pitada de criatividade e diversão.
    Este conto de Vic Key é bem um exemplo disso !
    Parabéns e obrigado pela participação e que venham de lá mais contos .
    Virmancaroli

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